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Porto Seguro

Porto Seguro

Hoje o dia amanheceu diferente.

Não que tenhamos nos surpreendido pelo mau tempo e a chuva se preparando para cair. Afinal de contas, isso aconteceu durante quase todo o “projeto de verão” que tivemos esse ano aqui na Suíça.

A grande novidade dessa Segunda-Feira estava na mais importante mudança na nossa família desde a chegada da Yara, há quase dois anos. Hoje, porém, os holofotes e a nossa alegria estavam particularmente na Tainá, nossa primogênita.

Há meses temos conversado sobre o seu ingresso no Jardim de Infância. Procurado explicar as novas dinâmicas e o fato de que agora ela começaria a trilhar seus caminhos sem a presença da sua irmãzinha e grande parceira de aventuras.

Pais e mães nunca estão preparados para esses momentos de desapego. Esse novo ciclo tira das nossas mãos o controle, o monopólio dos estímulos e de sermos figuras únicas na educação das nossas filhas. Agora a Tainá terá novos amigos, novos modelos que vão contribuir para quem ela será mais adiante.

Algumas lágrimas escorrem, de alegria e um pouco de apreensão. Mas a nossa passarinho foi voando, destemida, alegre, 100% Tainá.

Hoje, de certa forma, ressignificamos o nosso papel de pai e mãe, aceitando o convite da vida para sermos, sobretudo, grandes acompanhantes das nossas filhas. São elas as verdadeiras protagonistas das próprias histórias.

Um detalhe.

Ao sair de casa, a Tainá escolheu pegar na minha mão no caminho da escolinha. Dentro senti uma alegria incrível por me sentir “Porto Seguro”.

Muitos novos ciclos virão, mas é esse o meu maior desejo. Continuar sendo um “lugar” visível onde ela pode ancorar segura, sempre que precisar.

Sete anos de Suíça

No dia 1 de abril de 2021 eu completei sete anos como imigrante na Suíça. O sentimento é de ter percorrido uma longa jornada com fases distintas. Foram anos de muito aprendizado, momentos dolorosos, mas que hoje me fazem nutrir um amor sincero por uma cultura bem diferente da brasileira.

Quando cheguei aqui em abril de 2014, além de trazer comigo o entusiasmo de uma recente experiência missionária no oeste africano, sentia a alegria de começar uma vida nova em Genebra: um lugar cheio de memórias incríveis com a minha agora esposa, Flavia.

Após a “lua de mel” dos primeiros seis meses, as diferenças culturais que antes eram vistas como riquezas, passaram a se tornar um peso difícil de suportar. Mesmo estando antes em Genebra, essa era a primeira vez que tinha o desafio da integração diante de mim, principalmente ligado à inserção no mercado de trabalho e ao aprendizado da língua local: o francês.  

Naquele momento, eu era constantemente questionado por me comportar de maneira diferente, ser fisicamente diferente e, em resposta, eu me esforçava ainda mais para não perder a minha identidade brasileira.

Os primeiros três anos foram o período mais difícil da minha vida na Suíça. Foi quando eu mais precisei buscar o equilíbrio entre preservar a minha identidade e estar disposto a negociá-la com a nova cultura em que estava imerso.

A dificuldade com a comida e o clima, o aprendizado de uma (ou mais) nova língua e as dinâmicas interpessoais completamente distintas foram os elementos mais difíceis de assimilar. Eles foram (e as vezes ainda são) causa de dor, frustração, ansiedade e, principalmente, solidão. 

Fazer comparações constantes com aquilo que tinha deixado para trás, tornou-se uma reação defensiva comum. A grande mudança aconteceu após esses primeiros três anos, quando voltei de férias para o Brasil.

O tempo vivendo distante fez com que eu perdesse a ligação orgânica que tinha com o meu país natal. O Brasil que conhecia tinha sofrido mudanças drásticas políticas e econômicas. Amigos e familiares viviam outras fases e muitos deles passaram a desconsiderar a minha visão do país, pelo simples fatos de não viver mais lá a tanto tempo. 

Foi então que começou o que eu chamo de “fase do vazio” em que nem somos ainda cidadãos da nossa nova pátria, nem podemos mais nos considerar cidadãos da pátria de origem.

O que pode parecer algo essencialmente ruim, na verdade foi uma janela que se abriu para um processo de integração mais profundo e livre de bloqueios interiores ligados à minha cultura original. Essa nova fase inaugurou uma dinâmica pessoal nova, menos preocupada em evidenciar diferenças e fazer comparações. 

Já há algum tempo eu comecei a nutrir um sentimento de orgulho e amor pela Suíça. Depois desse longo processo de amadurecimento interior, hoje é bem mais fácil entender as diferenças como riqueza e de assimilar os elementos da nova cultura à minha própria identidade.

É difícil saber o quanto eu estar imerso em um ambiente de aceitação e respeito contribuiu para a passagem dessas fases. O tempo é, sem dúvidas, um grande aliado.

O que posso dizer à partir da minha experiência pessoal é que muitas dessas dificuldades precisavam de um trabalho interior, bem mais do que a simples necessidade de aprovação/aceitação externa.

Sempre digo que a integração é um processo dramático, pois toca elementos constitutivos da nossa identidade. Contudo, por meio dela somos convidados a descobrir a nossa incrível capacidade de incorporar dimensões que vão muito além daquelas que nos originaram. 

É preciso querer, exige esforço, mas, sem sombra de dúvidas, vale a pena! 

Racismo

Superar o racismo com o encontro

Falar sobre racismo sempre foi algo estranhamente distante para mim. Apesar de ter crescido em um ambiente jocoso em relação a minha cor, raras foram as situações em que me percebi inferior, simplesmente pela cor da minha pele ou por ocupar um espaço que não correspondia às expectativas dos brancos. Foi assim na escola, na universidade, na Igreja ou no mercado de trabalho, apesar de nunca ter encontrado um negro ocupando uma posição de liderança nesses ambientes para me espelhar.

A primeira vez que fui vítima do preconceito racial foi em uma das escolas particulares em que estudei. Durante um debate sobre as eleições daquele ano fui ridicularizado em voz alta por uma colega branca por não apoiar um determinado candidato que era preto como eu. Senti-me humilhado diante dos meus colegas, mas engoli a ofensa sem saber que estava sendo vítima de racismo. Muitos anos depois, dessa vez na Itália, fui ofendido e maltratado por suspeita de furto em um supermercado em Figline Val d’Arno. Um sentimento de indignação e desrespeito difícil de explicar.

Ontem foi ao ar o episódio sobre Racismo Estrutural do canal do YouTube Papo Objetivo em que fui convidado a partilhar minhas vivências como preto fora do Brasil. Essa foi a primeira oportunidade de externalizar publicamente o que venho descobrindo há alguns anos: a importância da luta pelo reconhecimento e a igualdade de direitos dos pretos, o valor da reparação histórica e, principalmente, a compaixão comigo e com todos aqueles que não sentem na pele as consequências do racismo estrutural.          

Um dia desses, aqui na Suíça, estava sentado em uma mesa repleta de pessoas brancas, discutindo sobre o racismo de forma inflamada, cheia de propósito. E eu estava lá, ouvindo tudo. Ninguém em momento algum pensou em me perguntar sobre a minha experiência enquanto negro. Por outro lado, era bonito perceber uma preocupação comum em todos de se tornarem pessoas melhores, mais conscientes do racismo estrutural.

Ao tomar a palavra, ressaltei a importância de enfrentar o racismo com a perspectiva do encontro. Não basta limitá-lo a uma discussão puramente intelectual. É preciso ir de encontro ao preto, à preta, à cultura preta, à arte preta. Eu sempre me pergunto: quanto amigos pretos as pessoas brancas têm? Quanto da cultura preta, da arte preta as pessoas conhecem? Quais dos autores e autoras pretas as pessoas já leram? No encontro a gente descobre as belezas e os limites do outro, profundamente diferente de nós, e a partir dele ampliamos a nossa percepção desse outro, ficando mais atentos para não o ferir ou ofendê-lo. 

Paralelamente, é fundamental educar as novas gerações para uma cultura antirracista. Temos o desafio de ajudar as meninas e meninos pretos a serem apresentados à questão racial não a partir do racismo, da violência. Eles precisam internalizar a sua negritude enquanto potência, como disse a jornalista Adriana Couto, durante o programa Roda Viva com o rapper Emicida.

O caminho antirracista é um caminho de luta quotidiana, mas que precisa ser feito com profunda compaixão e respeito. É preciso uma evolução que desça da cabeça e chegue aos braços e ao coração.

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