“Como dez pessoas podem viver em um espaço tão pequeno?” Essa pergunta foi feita a mim por uma irlandesa de 18 anos durante uma visita à favela da Vila Prudente, na zona leste de São Paulo. Era uma bela e ensolarada manhã de sábado, 20 de julho de 2013. Ao todo, eram 50 jovens irlandeses, todos católicos entre 17 e 22 anos, que vieram à capital paulista para a Semana Missionária, evento da Arquidiocese de São Paulo que serviu como uma prévia da Jornada Mundial da Juventude – que aconteceria no Rio de Janeiro na semana seguinte.
A favela da Vila Prudente, localizada na zona leste de São Paulo e pertinho da região do ABC, é considerada a mais antiga de São Paulo. Poucos sabem ou mesmo devem se lembrar desse fato ao passar pela avenida Professor Luiz Ignácio de Anhaia Mello e pelo complexo de viadutos que liga a região aos bairros do Ipiranga e Sacomã. Próxima a ela estão áreas de alto padrão e grande valor comercial, como o Shopping Mooca e o Parque da Mooca – exemplo clássico dos contrastes que marcam a maior metrópole brasileira e nosso país.
Lágrimas de indignação
Eu pouco sabia da comunidade às vésperas de visitar o local pela primeira vez. Como faltavam potenciais tradutores para os irlandeses, fui chamado às pressas por uma amiga que estava na acolhida dos jovens. E foi a partir desse “empurrãozinho” vindo do exterior que tive uma das experiências mais ricas nos últimos anos.
A pergunta feita pela minha colega irlandesa e as lágrimas que vieram dela a seguir me fizeram pensar: de fato, como podem famílias inteiras viver em cubículos que certamente devem ser menores que os quartos dos leitores deste texto? Sim, aquela era uma triste realidade confirmada pelo guia. Ou seja: estamos deixando as diferenças sociais se tornarem algo corriqueiro e perdendo a sensibilidade? Ela deveria chocar e mobilizar não apenas aqueles 50 jovens irlandeses, mas todos os cerca de 11 milhões de habitantes de São Paulo.
O choque era ainda maior em uma área da favela que conservava as marcas de um incêndio ocorrido seis meses antes, que tinha destruído cerca de 70 barracos. Felizmente ninguém morreu naquele episódio, mas os traumas materiais e sobretudo humanos eram evidentes diante dos barracos queimados. O pouco que consegui traduzir para o inglês daquele fato – e da realidade daquela comunidade – foram suficientes para tocar aqueles estrangeiros que até então só sabiam das “favelas” (termo usado por eles próprios para designar as moradias precárias nas quais vivem milhões de brasileiros).
Lágrimas de alegria
Contudo, nem tudo foram lágrimas naquele sábado. Apesar das dificuldades vividas pelos habitantes da comunidade, era possível encontrar alegria e demonstrações de solidariedade e superação que não apenas emocionaram os jovens irlandeses e os amigos brasileiros que os acompanharam, mas serviram como lição de vida para cada um dali em diante.
Foi possível ainda conhecer o trabalho feito por missionários da própria Irlanda que chegaram à região ainda na década de 1970. Eles formaram, com a ajuda da comunidade, um centro cultural e de capacitação profissional que ensina informática, alfabetiza e ajuda na inserção social da população local, dando ferramentas para que seus jovens, crianças e adultos possam ter um futuro melhor. Sim, as dificuldades existem e são enormes, mas quem disse que elas não podem ser superadas?
Aqui as lágrimas ainda apareciam no rosto dos jovens irlandeses – e também de seus parceiros brasileiros. Mas desta vez eram diferentes, pois expressavam gratidão, uma lição aprendida, uma nova visão de vida muito mais ampla que se abria no horizonte de cada um, sem o filtro das mídias e dos preconceitos que costumam ser atrelados às favelas e à vida de quem vive nelas. Uma radical virada na esquina para cada um que esteve ali presente.
Vire a esquina
Sei que ao ler este texto pode ficar um gostinho de “quero mais”, mas a experiência e o intercâmbio cultural foram tão intensos que palavras nem sempre são suficientes para expressar a gama de sentimentos e aprendizados que uma experiência como essa podem trazer a uma pessoa.
As lágrimas não apenas expressam nossa indignação com uma realidade perversa e desumana, mas também mostram nossa felicidade e gratidão com palavras amigas, sentimentos nobres. Em suma, as lágrimas podem nos ajudar a virar a esquina do preconceito, dos estereótipos e do determinismo de que “vai ser assim sempre e nunca mudará”. E ao virar essa esquina, é possível ver o quanto podemos fazer para ajudar a mudar essa realidade e tornar mais humanos a si e a sociedade ao redor.
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Rodrigo Borges Delfim, formado em jornalismo pela PUC-SP em 2009, trabalha atualmente na área de Novas Mídias do portal UOL. Interessado em Mobilidade Humana, Políticas Públicas e Religião, desde outubro de 2012 mantém o blog MigraMundo para debater e abordar migrações em geral. É também participante da Legião de Maria, movimento leigo da Igreja Católica, desde 1999.