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Yara: Um rio de felicidade – Segundo ato

Chegamos na casa de parto de Berna para o nascimento da Yara sem saber ao certo se já estávamos no quase. A minha única certeza é que devia fazer o esforço para direcionar o foco do que sentia para o suporte e a presença que a Flavia precisava.

Costumo dizer que não existe nada mais mágico do que o momento da chegada de uma vida no mundo de cá.

Após sermos recebidos pelas sorridentes, e super jovens, parteiras, entramos em uma sala com luz baixa, aconchegante, mas logo o trabalho de parto evoluiu e nos dirigimos à banheira. A Flavia queria muito ter um parto na água, com a esperança de que ia ajudar a aliviar a dor.

O que experimentamos a partir do momento que entramos na sala de parto, com a banheira, naquele 12 de Setembro, foi bem diferente do que vivemos com a Tainá. As contrações vinham, mas a Yara não. O fato de não ter uma parteira experiente o bastante para guiar a Flavia nesse momento exigente, foi tirando a tranquilidade dela (e minha) e o parto foi se alongando.

Depois de diversas tentativas, fomos informados que a Yara estava virada, em uma posição que dificulta a “expulsão” (nome feio) do bebê. Mas a Flavia continuava lá. Percorrendo a maratona dela. E eu, procurando encorajar com sorrisos, palavras de incentivo e suco de frutas.

Lembro como se fosse ontem da palidez e a exaustão no volto da minha companheira. O medo e a apreensão. Ali, mais uma vez, via meu caráter controlador sendo provado. O que podia fazer era pouco, mas nada era desculpa para me desconectar daquele momento sagrado.

Puxa empurra, puxa empurra. 

E finalmente a nossa rainha do rio deslizou sobre as águas da banheira. 

Alívio? Ainda não, pois a Yara não estava respirando. 

COP27 representatividade

COP27 – Revolucionando o meu conceito de diversidade 

Na viagem rumo à COP27 em Sharm El Sheikh, no portão de embarque da conexão em Istambul, conheci o Ananda Lee Tan, senhor canadense com origens indígenas na Índia. A conversa com ele me ajudou a redescobrir o quão importante é olhar com profundidade para o contexto em que estamos inseridos para poder identificar as verdadeiras causas dos problemas aparentemente insolúveis. 

O bate papo informal na fila do embarque me fez lembrar de um momento de partilha com Giuseppe Maria Zanghì quando eu vivia no Centro internacional dos jovens do Movimento dos Focolares, na região dos Castelos Romanos. Ele dizia: “É preciso olhar a nossa existência com profundidade senão acabamos reproduzindo o que está na superfície”.

Aqui no COP27, mas talvez em grande parte das reflexões de como frear o aquecimento global, existe uma fixação com a diminuição das emissões de CO2. Sim, ela é importante. Só que ao focar exclusivamente nela, desviamos a nossa atenção para as verdadeiras raízes do problema que têm impacto muito mais devastador para o clima do planeta.

São as questões da ocupação e degradação da terra, o desprezo das culturas nativas, a extração colonial dos recursos naturais nos países em desenvolvimento, na maioria das vezes impulsionadas por multinacionais com sede em países desenvolvidos. E, por fim, um sistema que carece de representatividade nos organismos internacionais, incapaz de criar impedimentos formais às praticas devastadoras do ambiente, combinadas com a negligência em proteger os direitos humanos.

E aqui inclusão não é só ligada à nação dos negociadores que importa. Mas se eles realmente espelham suas comunidades. Explico. Muitos dos negociadores de países em desenvolvimento aqui no COP27 já estão completamente desconectados da realidade daqueles que eles representam. O colonialismo cultural faz com grande parte da sabedoria local fosse perdida em detrimento de uma concepção de saber “de elite” que em vez de libertar conforma na sua uniformidade.

Toda vez que encontro um indígena, me dou conta da existência de um saber milenar que não dou a devida importância. É nesse sentido que precisamos facilitar encontros, entre diversos. É aqui a essência do que acredito ser representatividade. A busca de pessoas que trazem de suas diferentes vivências, educação, culturas, uma riqueza capaz de contribuir para soluções cadê vez mais difíceis de alcançar.

Olhar a crise climática como um processo de abertura e reconexão com o mundo, mas também entre nós, talvez ajude a encontrar um caminho de colaboração nessa nossa sociedade fragmentada e isolada no seu individualismo.

COP impementação

COP27 e as esperanças de uma implementação urgente

Estou à caminho da minha quarta Conferência do Clima das Nações Unidas, mais conhecida como  #COP27. Desde a minha primeira participação na COP21 em Paris já se passaram seis anos. 

De lá para cá, o otimismo e a euforia do Acordo de Paris acabou freado por governantes de extrema direita que se recusaram a implementar as medidas políticas ambiciosas acordadas na capital francesa. Somado a isso, o mundo teve de lidar com uma pandemia que tirou qualquer chance de que os países direcionassem seus recursos para a implementação das metas acordadas. Mas o pior é que não para por aí! A invasão russa na Ucrânia e a insegurança energética criada pelo conflito fez com que alguns países desenvolvidos voltassem ao uso do carvão para amenizar o impacto interno do aumento no preço do gás natural.

Mas e eu? O que eu tenho a ver com isso?

Já em 2015, fui cobrir a participação de organizações ancoradas em comunidades religiosas que levam para a conferência uma dimensão que vai além das questões técnicas.

Em diversas partes do mundo, inclusive no meu Brasil, quando as instituições políticas falham, muitas vezes são as instituições religiosas que dão suporte aos mais atingidos por secas, inundações e outras catástrofes naturais provocadas pela degradação dos recursos naturais.

São principalmente as igrejas que reforçam a narrativa de que existe um dever moral de cuidar da natureza, que precisa ser protegida porque é um dom de Deus e para que nossos filhos e netos possam habitar em um planeta como o que conhecemos hoje.

A narrativa espiritual também engloba comunidades indígenas, muitas delas em áreas do Pacífico, em que os oceanos estão engolindo suas terras devido ao aquecimento global. Para eles, não é uma simples questão logística, ou de perdas e danos, mas uma violência que fere a sua própria identidade, profundamente conectada à terra onde vivem.

Poder estar fisicamente presente nessas conferências globais dá uma noção do esforço coletivo de encontrar soluções conjuntas para um problema que afeta à todos. 

O meu trabalho será dar visibilidade ás vozes dos mais afetados, na esperança de que os governantes tenham a coragem de ir além dos desafios técnicos e dos interesses políticos.

Sem uma abertura holística que permita olhar a crise climática na sua dimensão humana, existencial e até mesmo espiritual, parece difícil crer que os líderes globais darão ouvidos aos gritos desesperados e urgentes daqueles que anseiam por uma implementação robusta que já deveria ter começado seis anos atrás.

Davi

Davi e (é) o milagre

Faz tempo que desenvolvi um ceticismo teimoso a respeito do impacto concreto da oração. Rezar com as minha filhas me ajuda bastante a continuar praticando, mas há anos perdi a conexão intensa que tinha com o divino enquanto orava. Mas o que isso tem a ver com o nascimento do nosso terceiro filho?

Reviver “dentro” as horas angustiantes do trabalho de parto do Davi ainda causa calafrios, mas partilhar tem um papel terapêutico para mim.

Tudo começou às 23:48 do dia 10 de Junho, quando comecei as registrar as contrações regulares que haviam iniciado algumas horas antes e anunciavam que o Davi chegaria naquela noite. Lá pelas 1:20 e contrações a cada dois minutos, fomos para a casa de parto onde o nosso filho deveria nascer. Chegando lá, as dores da minha esposa aumentavam e paralelamente a minha angústia em poder “somente” estar lá, sustentar com palavras de encorajamento, um copo de água.

Aqui preciso fazer um adendo a respeito de uma dimensão da minha personalidade que me causa bastante sofrimento: a necessidade de ter o controle das situações. Controlar sempre foi um mecanismo de sobrevivência para mim. Ajudou-me a lidar com as dificuldades, a superar desafios, bolar planos, encontrar soluções. Por outro lado, a falta de controle me causa bloqueio, sofrimento e, sobretudo angústia.

Foi essa angústia que senti das 1:40 até as 5:10, período em que tive que presenciar a dor da Flavia, aliada a minha impotência. Claro, sofrer psicologicamente é quase irrelevante, se comparado às ondas expulsivas dentro da minha esposa, que tentavam trazer o Davi para nós sem sucesso. Simplificando: a cabeça do Davi estava “emperrada” e o trabalho de parto não conseguia avançar.

Eu nunca tive problemas sérios em relação aos idiomas que tive de aprender ou os que unicamente entendo, como o alemão. O fato é que a situação exigia cabeça e coração em sintonia e que os nossos interlocutores não estivessem sempre se comunicando no dialeto da Suíça. Aos gritos, minha esposa foi clara: precisávamos ir para o hospital.

Enquanto percorríamos os corredores brancos da “Frauenklinik” (Clínica da mulher, em português), levantei a cabeça e percebi que já eram 5:10. Coração e pernas já estavam exaustos. Entramos em uma das salas e lá, cinco profissionais da saúde nos esperavam para tentar ajudar no parto. Tentativa após tentativa, agora com a Flavia sedada, ficava claro para todos que o Davi não sairia naturalmente do ventre da sua mãe.

E aqui as orações escalaram dentro de mim. Diante da minha impotência, do desespero interior por agora entender pouco ou quase nada do que as médicas e enfermeiras conversavam, me senti como o Cristo que sempre acreditei: abandonado. Ali, “sozinho”, pedia Luz naquele longo e aterrorizante túnel. Paradoxalmente, encontrei forças ao pensar em todas as pessoas que sempre estiveram conosco e que, naquele momento, faziam da minha solidão, multidão.

Finalmente, uma jovem enfermeira chegou até nós e apresentou os termos de consentimento para a iminente cesariana. Eu e a Flavia nos olhamos, esgotados, incapazes de refletir alternativas. Só me lembro de a Flavia dizer que queria que o bebê viesse para os nossos braços assim que nascesse e que aquilo era muito importante para nós.

Parece que ali uma das médicas entendeu que uma cesariana seria a última alternativa para nós. E então nos disse que tentaria uma última manobra antes de irmos para o centro cirúrgico. Ali as esperanças se renovaram. Entendi que deveria aumentar meu encorajamento. Ainda dava.

Manobras, extrator a vácuo e as 6:11h do dia 11.06, depois de três longas contrações e um esforço heróico da minha esposa, finalmente nos encontramos com o nosso Davi.

Vê-lo nos braços da Flavia parece que acionou o botão de desarme dentro de mim. Lágrimas de desespero, alivio, exaustão, gratidão. Aconteceu inesperadamente o milagre que precisávamos.
Absolutamente nada foi como esperávamos, mas no final, fruto de decisões e ações corajosas: das médicas de tentar, da Flavia empurrar e eu, orar, o Davi estava lá nos nossos braços.

Muitas coisas aconteceram após o nascimento no hospital aqui na Suíça. O sentimento de invisibilidade ao acompanhar o meu filho sozinho na neonatologia e assistir a intervenções nele sem que os cuidadores sentissem a necessidade do meu consentimento.

Foi um dia mágico e ao mesmo tempo doloroso. Um dia em que as lágrimas vinham e voltavam. Elas ainda escorrem interiormente.

Porém, apesar de tudo, quero muito que fique o registro do poder da oração, do “entregar nas mãos de Deus” e acreditar que o Ele está, como sempre esteve, com a nossa família.

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