No Brasil, sou brasileiro
Na Europa, sou europeu
Na África, sou africano
É o individualismo ocidental o grande motor das doenças psicológicas. Viver desprendidos das nossas raízes nos torna fracos. Viver em comunidade nos faz fortes.
É o individualismo ocidental o grande motor das doenças psicológicas. Viver desprendidos das nossas raízes nos torna fracos. Viver em comunidade nos faz fortes.
Já estamos – eu e a minha esposa – há mais de um mês na África, sendo que a “nossa África” é um belo pais tropical do oeste do continente: a Costa do Marfim.
Neste primeiro mês, mergulhamos na cultura marfinense e vivemos cada dia com uma intensidade assustadora. Só agora sinto possuir alguns instrumentos que me ajudam a transformar preconceitos em constatações.
Claro que, mesmo assim, o tempo que passamos aqui é ainda muito reduzido para sínteses com “propriedade”. Mas, acredito que, quando os conceitos são baseados em relações, importa menos o passar de horas do tempo cronológico e mais a forma como se entra em sintonia com “o outro”.
Os marfinenses são submissos aos “brancos”?
A África é o continente da acolhida?
Os conflitos existentes no continente africano são todos consequência da exploração colonial?
Conversando com um senhor africano sobre a situação atual da África em geral, pude perceber que, como no Brasil (e na América Latina como um todo), os cidadãos africanos estão à procura de sua identidade, com crescente consciência e maturidade histórica.
Infelizmente, como acontece em grande parte dos lugares que foram consumidos pela ganância de seus colonizadores, no continente africano ainda existe um profundo deficit social. Assim, sem dúvidas, os tempos serão diferentes. Uma angolana me confidenciou sua impressão: “Saímos há pouco tempo das cabanas”, acrescentando que só agora a África pode descobrir, de maneira parcialmente livre, as possibilidades provenientes do desenvolvimento material.
Claro que, no mundo globalizado, surgem também novas questões. Aumenta-se a circulação de pessoas diferentes, bens de consumo e, desta forma, cada nação africana deve encontrar o seu caminho (e o equilíbrio), para depois buscar um destino comum no continente.
Aqui na Costa do Marfim, de maneira geral, percebi que as pessoas são pouco afetuosas. Nada de abraços, beijos em público, nem mesmo entre pais e filhos ou entre casais. Paradoxalmente, é incrível como o povo daqui é acolhedor.
Na primeira vez que fui ao nordeste do Brasil fiquei impressionado com a acolhida generosa e a preocupação “cultural” para que eu, o visitante, me sentisse bem. Aqui na Costa do Marfim eu sinto a mesma coisa. Os marfinenses são muito acolhedores e querem que sempre nos sintamos bem.
Porém, as vezes me pergunto se essa acolhida é realmente sincera, natural, ou uma espécie de “resquício de submissão cultural”. Conversando com meu amigo africano pude perceber que não é nem uma coisa nem outra, mas uma mistura das duas.
É verdade que, como estrangeiros “não africanos” somos, sim, tratados de maneira diferente. Porém, isso não quer dizer que exista algum tipo de preferência ou submissão. Entre os estrangeiros da África também existe o cuidado com a acolhida, o que é difícil perceber estando fora das dinâmicas sociais.
Claro que, por outro lado, quando existe má intenção ou conflitos internos essa acolhida se desfaz. “Os africanos não são burros”, disse o meu amigo, mas, em linhas gerais, no contato com alguém que vem “de fora” e que precisa de ajuda, os africanos são sempre muito acolhedores.
Ler um bom livro te faz viajar sem sair do lugar e ajuda tanto a virar esquinas da vizinhança como a cruzar continentes e oceanos inteiros. E durante minhas férias, seja sentado em uma praça, no salão de embarque do aeroporto ou dentro de um ônibus ou avião, pude viajar um pouco à África de duas formas: com as atualizações dos amigos Valter e Flavia na internet (direto da Costa do Marfim) e com o livro “Candongueiro: viver e viajar pela África”, escrito pelo jornalista João Fellet.
A sugestão de leitura veio da minha amiga Bruna, que é prima do autor e me emprestou o livro (ótima dica, muito obrigado!). Com uma leitura leve, a obra descreve a vivência que Fellett durante um ano e meio morando na África. A primeira parte se passa em Angola, onde ajudou a montar um jornal de economia, em um país que pouco a pouco se reestrutura após anos de guerra civil – mas não fica livre de contrastes e enormes contradições sociais, políticas e econômicas.
Depois da experiência em Angola, o jornalista decidiu fazer uma viagem de sul a norte, iniciada em Johanesburgo (África do Sul) e terminada no Cairo (Egito), passando por Moçambique, Tanzânia, Quênia, Uganda, Sudão do Sul (na época ainda parte do Sudão), Etiópia e o Sudão atual. Há também um blog sobre a experiência, chamado Candongueiro, que têm trechos presentes no livro e outros “causos” e fotos.
A opção de viagem a bordo de candongueiros (como as vans de passageiros são chamadas em Angola), como diz Fellet, “não tinha nenhuma tendência masoquista”, mas sim vivenciar o meio de transporte utilizado diariamente pela maior parte dos povos que vivem na África.
Durante a jornada pela África, Fellett topou com diversos personagens marcantes, alguns deles com capítulos inteiros dedicados a eles. Só para citar alguns: a moçambicana e descendente de indianos Sakina, mãe e motorista de van; o etíope que fugiu de casa para não se casar e poder concluir os estudos; dois irmãos egípcios que imigraram para o Sudão e acompanharam o jornalista no caminho para o Egito; e o Mr. Brown, britânico de 78 anos que se diz apaixonado pela África e trocou a Europa e o Canadá por projetos sociais e educacionais em Uganda.
“Perrengues”, é claro, não faltaram, como o golpe do qual escapou no Quênia, pessoas que viram no jornalista uma forma de obter dinheiro ou alguma outra vantagem material, e o momento no qual o autor quase perdeu celular, documentos e sua câmera fotográfica em uma latrina. Para saber mais detalhes dos “causos” descritos no livro, é melhor ler o livro e o blog com os próprios olhos para não perder a graça.
Independente do destino ou trajeto, sem dúvida qualquer viagem tem potencial para virar uma vida do avesso. E a África, com toda sua história, riqueza e preconceitos a serem desfeitos, é um terreno dos mais férteis para essa experiência. E enquanto não chega minha vez de ir, viajo por ela com blogs e livros.
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Rodrigo Borges Delfim, formado em jornalismo pela PUC-SP em 2009, trabalha atualmente na área de Novas Mídias do portal UOL. Interessado em Mobilidade Humana, Políticas Públicas e Religião, desde outubro de 2012 mantém o blog MigraMundo para debater e abordar migrações em geral. É também participante da Legião de Maria, movimento leigo da Igreja Católica, desde 1999.
Três semanas vividas em Man. Nesse pedaço de África Ocidental, são inúmeras “as cores escondidas nas nuvens da rotina”. Algumas cores nós conseguimos perceber, outras, certamente, passam batidas, por conta da nossa visão limitada das coisas e pessoas. Também não são nuvens provenientes do Harmattan’ (vento sazonal que ocorre durante o inverno no hemisfério norte e forma aqui uma nuvem de poeira sufocante e que entra por toda parte) que devemos superar para “enxergar” melhor, mas, principalmente, a desconfiança daqueles que ainda não nos conhecem.
Nessa cidadezinha com escassos recursos e uma visível ausência do Estado viver bem, tanto para os marfinenses quanto para os visitantes, é um desafio cotidiano. Ruas repletas de lixo, ausência de um sistema de saúde e de organização do trânsito levam à disseminação de doenças, negligência no tratamento da saúde da população e muitas mortes por acidente automobilístico.
Esses são alguns dos tantos problemas pontuais, contudo, o que causa mais espanto, mas é certamente compreensível, é a descrença orgânica nos governantes e, por consequência, em tudo aquilo que está ligado ao governo, como os hospitais (que, muitas vezes, tratam somente aqueles que podem pagar), por exemplo.
Em Man o caos organizacional não impulsiona um tipo de anarquismo social. O que poderia talvez levar ao desrespeito e à violência crônica, paradoxalmente, produz um clima de respeito e gentilezas.
Um fator interessante é que aqui não existem extremos sociais: ou se é pobre ou muito pobre. Em uma família pobre, um dos membros tem, provavelmente, um trabalho formal e pode viver em uma casa como as nossas no “Ocidente”. Em contrapartida, deve ajudar os familiares mais necessitados. Já os “muito pobres” abrigam, em suas casas, famílias enormes, que vivem no espaço ao redor, com sala, cozinha e banheiro ao ar livre e somente os quartos em uma construção de tijolo, coberta por telhas.
Existe miséria em Man? Sim. Mas não é nenhuma surpresa para mim, que cresci no país que figura entre os protagonistas das maiores desigualdades sociais do mundo. Porém, aqui, mesmo diante de uma pobreza extrema, existe um respeito social bem maior do que eu encontrei na minha cidade natal, São Paulo. Não se ouve gritaria nas ruas, nem se vê “empurra-empurra” no transporte público. Em Man as pessoas sorriem da escassez material, no Brasil se mata.
Claro que tudo tem dois lados e essa convivência pacífica acaba também promovendo um certo comodismo social, estagnando o desenvolvimento. Mas, em Man, vejo pessoas mais “leves”, que não criam complicações de raízes materiais.
Nesta cidade e, principalmente, no convívio com esse povo rico de valores e tradições, sinto uma alegria genuína, que experimentava quando trabalhava, voluntariamente, preparando e servindo comida aos moradores de rua de São Paulo.
No “Rango” – como era conhecida a atividade social – sentávamos no chão e brincávamos com as crianças, comíamos junto aos moradores de rua e, nessa igualdade, ou melhor, fraternidade, descobríamos seres humanos maravilhosos, com suas dores e alegrias, como todos nós.
Na África, o convite parece ser o mesmo, superar a aparência, abandonar preconceitos e esquemas psicológicos, para mergulhar no outro e descobrir as inúmeras “cores escondidas nas nuvens da rotina”.
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